terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Jornal “Público” – 11 de Dezembro de 2007 –

Jornal “Público” – 11 de Dezembro de 2007 –

Os cinco e o mistério de Derrida

Terá sido porventura uma das melhores surpresas do final de 2006, este Como é bom tocar-te, da plataforma de dança Tok’Art. Desde logo uma série de factores inusitados: um grupo de dança contemporânea português quase desconhecido (formou-se no fim de 2006), sedeado no Centro Cultural do Cartaxo, co-produzido pela EGEAC (empresa municipal de animação cultural), apresentava-se no S.Jorge, um palco arredado dos roteiros coreográficos. A peça, estreada no Cartaxo em Abril, inspirava-se na obra On Touching, de Jacques Derrida (1930-2004), teórico do desconstrutivismo e figura fundamental do pensamento filosófico contemporâneo.

Aparte alguma relação com a CNB (André Mesquita, o coreógrafo, 28 anos), ou com o Ballet Gulbenkian (Teresa Alves da Silva, bailarina) nenhuma destas escassas e pouco publicitadas referências pareceria justificar a deslocação massiva do público, maioritariamente jovem, que quase lotava a sala.

A partir de uma densa reflexão sobre os múltiplos sentidos e interpretações em torno do que significa "o tocar", a obra de Derrida procede a uma análise sobre o sentido do toque na tradição filosófica ocidental.

A coreografia enveredaria por uma exploração puramente física da problemática enunciada; seria sobretudo na sua obscuridade intensa e crescente que se encontrava a aproximação, mais poética que filosófica, à densidade do texto.

Os cinco jovens bailarinos denotavam uma maturidade interpretativa invulgar. À influência da dança clássica, contemporânea ou do street dance, associavam a fluidez e contenção energéticas do ioga ou do tai-chi-chuan. Recursos que não serviam apenas a exibição de movimentos virtuosos, mas sim a produção de uma dramaturgia preenchida de imagens eloquentes e perturbantes.

Num solo, César Fernandes combinava a uma magnífica felina ou reptilínea movimentação, um insólito rastejar em posição de lótus, que nos transportava até à Sesta do Fauno de Nijinsky e a um certo imaginário da dança modernista; num dueto, duas bailarinas surgem com as pernas emaranhadas sob o vestido, como siamesas que desesperam por se desenvencilhar.

Em situações mais abertamente líricas, como o dueto ao som uniformemente acelerado do refrão everybody gets a little lost sometimes (Mt.Zion), ou no texto sobre a esperança proferido em off, já perto do final, estava presente o risco da emocionalidade fácil e dos clichés do género. Mas, tal como para o comedido apontamento de vídeo, sempre que dela se parecia aproximar perigosamente, a peça consegue sempre descolar da banalidade. Se a composição coreográfica ocasionalmente tange o academismo, predomina uma dramaturgia coerente e um resultado despretensioso, para o qual concorre uma banda sonora parcimoniosa (uma toada electrónica e minimalista, que inclui Alva Noto, Sigur Rós, Pan Sonic e M. Zion), a luminotecnia, simples mas eficaz, e a cenografia despojada.

Quando o sentimento de que tudo já foi dito ou feito assola muita da criação contemporânea, desta coreografia intensa e sombria emana uma luz como há algum tempo não se via na dança portuguesa.

Luísa Roubaud

2 comentários:

Rodolfo disse...

Sobre o espectáculo:
Adorei os momentos de pura criação, prazer no movimento e no ser como os duetos corpo espelho ou o das pernas entrelaçadas em lótus.
Gostei muito dos momentos com narrativa fluída como a entrada a sair da caixa e do corpo, o solo com final acrobático tai-chi no YouTube (o desabrochar coerente dum corpo prenhe de sabedoria e vitalidade) e o corajoso final de celebração de alegria fraterna.

Aborreci-me nos momentos de coreografia ligeiramente forçada, sem o prazer do gesto, sem aquele abandono final que traz leveza e nos faz sentir que existe todo o tempo do mundo para viver e dançar. Sem o extra que descansa no ser… Senti que talvez o coreógrafo tentasse demais, por demasiadas coisas na cabeça dos bailarinos?

Não gostei dos momentos de desconstrução absurda, em que a banda sonora me oprimia e desrespeitava, sem que os corpos fossem tão longe na desconstrução, acompanhassem o som… Só fiquei irritado e à espera, à espera dos outros grandes momentos.

Boa sorte!!! Acredito que podem ser uma companhia de topo internacional de dance theatre - com técnica soberba, narrativa e prazer fluído :-)

Devolvo-vos as vossas palavras:
Quem somos, somos a dançar. Vivemos à procura do movimento
que nasce de cada um. Somos o futuro anterior. Dizemos como sabemos.
Somos do mundo. Criadores de mundo.

carlopod disse...

muita bom.
q orgulho de ser teu amigo!