domingo, 23 de dezembro de 2007
Ípsilon - Em balanço - O efeito-Ásia
Luísa Roubaud
Do hip-hop a "Giselle", da valsa vienense ao kuduro angolano, do katakali hindu à dança-teatro europeia: em toda a dança existe um subtexto que nos fala do lugar e do tempo em que vivemos. A emergência da Ásia no panorama geopolítico e cultural tornou-se uma realidade contemporânea iniludível. E, com oriental subtileza, um efeito-Ásia fez-se sentir na dança que vimos em 2007.
Diferente do fascínio pelo exotismo de muita da dança modernista do início do século, ou da atracção por um vazio nirvânico, patente nas coreografias de um certo pós-modernismo, o traço asiático na dança actual encontra novas particularidades. Tão-pouco estamos perante a físico-espiritualidade das artes marciais ou da meditação, subjacente ao "body-mind centering" ou à improvisação contacto, abordagens que serviram a preparação dos intérpretes-criadores e a valorização dos processos da criação, implícita nos "work in progress" das Novas Danças europeias e americanas; ainda menos perante a mera introdução de atmosferas plásticas vagamente orientais.
Um mundo que a circulação de pessoas, informação e imagens tornou mais pequeno tem propiciado o surgimento de linguagens híbridas, não exactamente inesperadas, mas muitas vezes surpreendentes. Tal foi o caso de "Moon Water" (Olga Cadaval), ou de "Bullit" (T.Camões), expressão das vivências americano-euro-asiáticas de Lin Hwai-min (Taiwan), e de Arco Renz (Alemanha). "Aculturação" ou "influência de", são designações que deixaram de se lhes adequar. No peculiar "Quiet, Please!" (Estado do Mundo) Nina Rajarani acelerou vertiginosamente o Bharatanatyam (dança clássica indiana), numa insólita condensação de imagens de uma Índia ancestral e do frenético quotidiano da "city" londrina. A seu modo, também "Como é bom tocar-te", de André Mesquita (Cinema S. Jorge), vai beber a um reservatório que já tem como adquirida a herança de códigos corporais comuns. Estas paradoxais personas da nossa contemporaneidade sinalizam outras corporeidades onde se pressentem, na era pós dança-teatro, novos caminhos para a dança teatral. Na aparência, um retorno ao "movimento puro" e a um certo tecnicismo. Mas de facto os paradigmas são outros: no lugar do ímpeto ocidental para o domínio do espaço é a energia concentrada e mantida no interior do corpo que projecta o movimento para a superfície, qual metáfora de outros modos de sentir e estar no mundo; a dança aproxima-se da hipnose ou do transe e, desse modo, a formas de espiritualidade. Por distante que pareça de uma "dança de manifesto", aqui subjazem declarações políticas e problematizações profundas sobre as novas identidades em construção no mundo de hoje.
terça-feira, 11 de dezembro de 2007
Jornal “Público” – 11 de Dezembro de 2007 –
Os cinco e o mistério de Derrida
Terá sido porventura uma das melhores surpresas do final de 2006, este Como é bom tocar-te, da plataforma de dança Tok’Art. Desde logo uma série de factores inusitados: um grupo de dança contemporânea português quase desconhecido (formou-se no fim de 2006), sedeado no Centro Cultural do Cartaxo, co-produzido pela EGEAC (empresa municipal de animação cultural), apresentava-se no S.Jorge, um palco arredado dos roteiros coreográficos. A peça, estreada no Cartaxo em Abril, inspirava-se na obra On Touching, de Jacques Derrida (1930-2004), teórico do desconstrutivismo e figura fundamental do pensamento filosófico contemporâneo.
Aparte alguma relação com a CNB (André Mesquita, o coreógrafo, 28 anos), ou com o Ballet Gulbenkian (Teresa Alves da Silva, bailarina) nenhuma destas escassas e pouco publicitadas referências pareceria justificar a deslocação massiva do público, maioritariamente jovem, que quase lotava a sala.
A partir de uma densa reflexão sobre os múltiplos sentidos e interpretações em torno do que significa "o tocar", a obra de Derrida procede a uma análise sobre o sentido do toque na tradição filosófica ocidental.
A coreografia enveredaria por uma exploração puramente física da problemática enunciada; seria sobretudo na sua obscuridade intensa e crescente que se encontrava a aproximação, mais poética que filosófica, à densidade do texto.
Os cinco jovens bailarinos denotavam uma maturidade interpretativa invulgar. À influência da dança clássica, contemporânea ou do street dance, associavam a fluidez e contenção energéticas do ioga ou do tai-chi-chuan. Recursos que não serviam apenas a exibição de movimentos virtuosos, mas sim a produção de uma dramaturgia preenchida de imagens eloquentes e perturbantes.
Num solo, César Fernandes combinava a uma magnífica felina ou reptilínea movimentação, um insólito rastejar em posição de lótus, que nos transportava até à Sesta do Fauno de Nijinsky e a um certo imaginário da dança modernista; num dueto, duas bailarinas surgem com as pernas emaranhadas sob o vestido, como siamesas que desesperam por se desenvencilhar.
Em situações mais abertamente líricas, como o dueto ao som uniformemente acelerado do refrão everybody gets a little lost sometimes (Mt.Zion), ou no texto sobre a esperança proferido em off, já perto do final, estava presente o risco da emocionalidade fácil e dos clichés do género. Mas, tal como para o comedido apontamento de vídeo, sempre que dela se parecia aproximar perigosamente, a peça consegue sempre descolar da banalidade. Se a composição coreográfica ocasionalmente tange o academismo, predomina uma dramaturgia coerente e um resultado despretensioso, para o qual concorre uma banda sonora parcimoniosa (uma toada electrónica e minimalista, que inclui Alva Noto, Sigur Rós, Pan Sonic e M. Zion), a luminotecnia, simples mas eficaz, e a cenografia despojada.
Quando o sentimento de que tudo já foi dito ou feito assola muita da criação contemporânea, desta coreografia intensa e sombria emana uma luz como há algum tempo não se via na dança portuguesa.
Luísa Roubaud
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
“Como é Bom Tocar-te”: uma ode à desolação
Estreado no Centro Cultural do Cartaxo, “Como é Bom Tocar-te”, um projecto de André Mesquita para o novo colectivo Tok’Art, apresentou-se, em Lisboa, no Cinema S. Jorge.
Apesar de não ser um espaço apropriado para se dançar, o público acorreu em força motivado pela centralidade do local, pela fome de bons espectáculos de dança ou apenas por uma pontual curiosidade. A verdade é que a conhecida sala de cinema quase encheu e, de um modo geral, o aplauso foi consensual perante a entrega e o investimento dos intérpretes.
Passado em grande parte na penumbra o quinteto, em tons de cinza, vive de uma luz crua e de um continuado sentimento de abandono. Dispersos por um espaço vazio, os bailarinos acabam por se encontrar, ao fim de mais de uma hora de dança, pulando de mãos dadas e veiculando o desconforto como uma espécie de forma de redenção.
A selecção musical, toda com peças contemporâneas, criou nos artistas e nos espectadores uma ambiência, algo esdrúxula.
O primeiro solo de César Fernandes é tocante na sua simplicidade e na gestão dos seus recursos físicos. O dueto com este bailarino e Teresa Alves da Silva - antiga bailarina do extinto Ballet Gulbenkian -, um elogio ao movimento cheio, intenso e desenvolto. Hugo Marmelada, uma jovem promessa no nosso panorama artístico, e Filipa Peraltinha, mostraram boa forma e um envolvimento notáveis.
O elenco, que se completou com Kelly Nakamura, apresentou-se com uma linguagem coreográfica marcadamente actual sem, no entanto, desinvestir do movimento como forma de expressão e exaltação física.
Os Tok’Art revelaram-se uma boa surpresa e, seguramente, deveriam criar um espaço para si numa altura em que são mais os grupos a fechar do que a aparecer em Portugal!
António Laginha
(Ligação directa à publicação online no título)
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
TimeOut
Está aí uma nova plataforma de dança. Mas atenção: a TOK’ART não quer só dançar. Quer tocar-lhe. Sara Gomes explica como.
Um olhar. Um beijo. Depois, a ousadia de tocar. Sem deixar marcas? Impossível. Que sentimento é que o acto de tocar provoca no outro? E em nós? Não há uma resposta inequívoca. O toque tem múltiplas possibilidades e desperta sensações difíceis de decifrar. Ou prever. Depois da estreia no Cartaxo, Como É Bom Tocar-te, do coreógrafo André Mesquita, apresenta-se este sábado no Cinema São Jorge, em Lisboa. O espectáculo – um exercício de reflexão sobre o toque – é o primeiro da TOK’ART, uma nova plataforma de dança. Alguns dos criadores e bailarinos do extinto Ballet Gulbenkian fazem parte do projecto.
“Quisemos trabalhar sobre a pele, a carne, o poder do beijo, o toque que existe também nos olhares”, diz o coreógrafo acerca de Como É Bom Tocar-te. A ideia surgiu de um convite para coordenar um projecto sob o tema “O Corpo Colectivo” na Universidade de Hildesheim, na Alemanha. Depois veio a descoberta de On Touching, do filósofo francês Jacques Derrida, considerado o pai do desconstrucionismo. “A obra é muito sugestiva. Percorre todas as dimensões que o toque pode assumir na vida das pessoas”, diz André Mesquita. E acrescenta: “O que fizemos foi recolher alguns pressupostos sobre a vivência do toque e tentámos estabelecer nexos de causalidade entre eles.” Em palco, são cinco bailarinos. Há momentos em que os seus corpos parecem acusar a dor de um toque desferido com ódio. Mas poderá o amor ser o verdadeiro culpado? Não é fácil dizer.
A reflexão vai mais longe. Propõe-se ainda repensar o efeito (ou não efeito) das imagens de destruição que todos dias nos tocam e chegam através dos media. André Mesquita adverte: “Não há aqui intuito de politizar qualquer questão. Não apresentamos soluções.”
Em Como É Bom Tocar-te os gestos cortam o espaço ao som da música minimalista de Alva Noto, Sigur Rós, Pan Sonic e M. Zion. “Procurámos um suporte musical que estivesse ligado à reflexão e à vivência que, ao longo do tempo de criação, fomos fazendo sobre esta temática do toque”, diz André Mesquita. “Criámos um ambiente que se pauta por alguma sobriedade no gesto, na imagem e, naturalmente, também na música.” O vídeo é, aqui, também usado como recurso: “Utilizamo-lo para ampliação do detalhe.” Apesar de contar no elenco com elementos que fizeram parte do Ballet Gulbenkian, como a bailarina Teresa Alves da Silva, a TOK’ART não tem qualquer intenção de substituir a histórica companhia. “Depois da extinção, entendemos que houve um espaço que ficou aberto, e material humano que o poderia preencher. Apenas isso. Em comum, só há os intérpretes.” Em Fevereiro, a TOK’ART conta estrear a segunda criação, Cinderela. Entretanto, esperam tocar outros públicos – dentro e fora do país – com Como É Bom Tocar-te. “Se a partir deste trabalho surgirem interrogações sobre a forma como cada um de nós ‘toca’ a sua própria realidade e a dos outros, teremos cumprido o nosso objectivo.”
‘Como É Bom Tocar-te’ estreia no dia 8, sábado, às 21.30. Cinema S. Jorge. 5 a 7,5€.
terça-feira, 4 de Dezembro de 2007
quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Ideia TOK'ART
Um espaço em que cada um traz vontade, experiência, generosidade e vida.
Vivemos o inesperado. Não vivemos para perpetuar. Somos passageiros.
Quem somos, somos a dançar. Vivemos à procura do movimento
que nasce de cada um. Somos o futuro anterior. Dizemos como sabemos.
Somos do mundo. Criadores de mundo.
Somos feitos de solidariedade orgânica. 80% de água. 20% de alma. E dor.
A nossa formação é humana e desumana.
Renunciamos à inércia, ao axioma e à improbabilidade da comunicação.
Preocupa-nos a humanidade, o presente, o percurso da água e da vida. A fome, a vida de quem não pode. A morte. A hegemonia. A inconsciência do tempo presente: a modernidade. O abuso do poder. A guerra. A falta de participação. A arrogância perante a ignorância. A injustiça. A indiferença.
Procuramos tudo. A diferença. Ser mais do que um. A partilha.
Viver. Compreender. Amar.
Querer. Imaginar.
Ouvir, saborear, ver, escutar.
Conhecer.
Criar.
Tocar-te.